Novo trabalho do violonista Felipe Mancini “Vissungos – Dos Cantos para as Cordas”

Com participações de Richard Neves, Sérgio Pererê, Okan Kayma, Guarda de Moçambique de Ouro Preto, Iran Ribas, Ivanbatucada e Júlio de Ayrá, álbum selecionado pelo projeto Rumos Itaú Cultural traz12 arranjos inéditos

Comumente atrelados às tradições fúnebres, os Vissungos são canções entoadas pelo povo Bantu para preservar parte de uma cultura dilacerada pela escravidão — incluindo aí cantos para enterrar entes queridos, mas também para suportar o trabalho pesado de extração de ouro e diamante nas minas ou até brincar e celebrar alguma rara vitória.

Partindo dessa história secular, o violonista Felipe Mancini apresenta o álbum “Vissungos – Dos Cantos para as Cordas”, que reúne 12 arranjos inéditos em violão para ressaltar, preservar e dar brilho e vida nova às melodias de Vissungos históricos entoados pelo povo Bantu, escravizado por mais de 300 anos no Brasil. Lançado na última sexta-feira, 22/8, o álbum está disponível nas principais plataformas de streaming.

Viabilizado pelo projeto Rumos Itaú Cultural (2023-2024), o projeto e parte de detalhada pesquisa histórica e musical de Felipe Mancini sobre os Vissungos, cantos atrelados à população escravizada no Brasil, originalmente residente abaixo da linha do Saara, na África, incluindo países como Angola, Congo e Moçambique. O pontapé inicial foi a percepção do músico a respeito da produção de estudos linguísticos sobre esses cânticos, mas a ausência de trabalhos musicais realizados diretamente com as melodias.

“Percebi o quão bonitas eram as melodias, além da importância para a compreensão da língua brasileira — porque o Vissungo mistura as línguas centro-africanas (línguas derivadas do quimbundo, umbundo e quicongo) com o português. E pensei: porque não trazer essas melodias para um trabalho de arranjo meu de violão solo? Principalmente porque esse repertório ainda não havia sido explorado de forma instrumental”, diz Felipe.

História

Para conceber o disco, entre diversos Vissungos relatados por comunidades tradicionais, principalmente os vissungueiros de Diamantina e Milho Verde (distrito da cidade do Serro), ambas as cidades situadas no Alto Jequitinhonha, Felipe Mancini tomou, inicialmente, o conjunto de 65 cânticos registrados em partituras pelo linguista Aires da Mata Machado em seu cânone “O Negro e o Garimpo em Minas Gerais” (1943). Mas foi muito além. 

O artista também contou com a consultoria do produtor e gestor cultural Bruno Emiliano, que atuou por dez anos como coordenador do Centro Cultural de Milho Verde (2004-2014), onde conviveu cotidianamente com o mestre Ivo Silvério da Rocha, considerado o último mestre vissungueiro vivo — que gravou o disco “Contos e Cantos Vissungos”, reunindo pérolas do cancioneiro vissungueiro.

“Bruno me forneceu alguns materiais de áudio e vídeo onde alguns mestres vissungueiros cantam e dão depoimentos, contando histórias do porquê que determinado Vissungo era entoado. Os nomes de alguns arranjos no disco vêm inclusive desses depoimentos. Alguns desses materiais que eu tive acesso nunca foram publicados, por escolha de quem os registrou. Bruno conseguiu esse material pra mim com o consentimento de quem o produziu. Daí eu extraí algumas melodias que usei para criar os arranjos”, conta Felipe.

Sonoridades e intenções

Nascido em São Paulo, e radicado desde 2021 em Ouro Preto, na região Central de Minas, considerado o coração do ciclo do ouro no período colonial, Felipe Mancini gravou todos os violões e violas do disco em seu homestudio, no distrito de São Bartolomeu, em Ouro Preto. 

Amparando os dedilhados alternados de violão e viola, estão paisagens sonoras capturadas pela região de Ouro Preto e que parecem transportar o disco para mais perto da história Bantu. Incluindo desde os sons de natureza, como a água corrente e percussiva de “Jambá”, gravada próximo à nascente do Rio das Velhas; até sonoridades mais densas, como os sinos e metais de “A Despedida”, capturados durante o cortejo de enterro do mestre Crispim, um dos maiores vissungueiros do país.

Ao longo do álbum, as músicas remontam a tradição Bantu, reunindo desde canções fúnebres, como “Padi Nosso” e “A Entrega”, passando por músicas feitas para aguentar o trabalho pesado, como “Lambá” e “Nascer do Dia”, até expressões afetivas da cultura Bantu, como a libertária letra de “Muriquinho Caminhando”, vissungo que relata o caminho de um menino até o quilombo — local de segurança para quem fugiu da escravidão.

Os arranjos de violão solo exigiram uma sensibilidade histórica e afetiva de Felipe Mancini. “No caso dos Vissungos, algumas questões foram desafiadoras. Uma delas é que algumas melodias são curtas, pois eram cantadas em atividades árduas e de conexão com a tarefa que estava sendo realizada. Portanto, naturalmente se repetiam. Também entendi, durante as pesquisas, que uma mesma melodia era interpretada com diferenças significativas dependendo de quem era o intérprete”, diz o artista.

“Portanto, assumi, num determinado momento, que eu poderia repetir as melodias nos arranjos, mas com mudanças significativas, às vezes mudando de tom, de rítmica e com camadas de improvisações, que também é uma característica dos Vissungos. Mas isso foi tratado sempre com muito respeito, levando em consideração a importância histórica, e, principalmente, ancestral que os cantos Vissungos carregam”, justifica o músico.

Participações

Os violões envolventes do álbum ganharam corpo com as participações especiais que agregaram inventividade e ancestralidade ao disco. Entre elas, a de Richard Neves (teclados e percussões), atual tecladista da banda mineira Pato Fu, conhecido por suas experimentações sonoras diversas, que incluem a música eletrônica e paisagens sonoras sampleadas, mas também trabalhos de produção ao lado de Maurício Tizumba, Milton Nascimento, Ivete Sangalo, Ney Matogrosso, entre outros.

O também mineiro Sérgio Pererê, referência da música afro-mineira com forte influência do Congado em sua obra, empresta seu conhecido e extensivo timbre grave em “Kuenda (Catopê de Milho Verde)”, repleta de vocalizações. Na mesma linha, como forma de mostrar a continuidade da influência Bantu na cultura mineira e brasileira, a Guarda de Moçambique Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia de Ouro Preto participa da última faixa, “Para Subir a Serra”.

“As Guardas de Congo, Moçambique e Catopê são uma forte continuidade da cultura Banto em Minas e também cantam coisas que mesclam as línguas centro-africanas com o português, de forma sincrética, misturando as religiões africanas com o cristianismo. Além disso, as Guardas de Moçambique têm a cultura de tocar devagarinho, de forma arrastada, ou seja, mais relacionada ao formato dos pretos velhos. Por isso, o meu convite para eles participarem do disco”, diz Felipe.

As percussões do disco são conduzidas por Okan Kayma, ivanbatucada e Júlio de Ayrá, que enriquecem as linhas rítmicas das canções, passeando por diversas nuances da música afro-mineira. A mixagem e a masterização do álbum ficaram a cargo de Iran Ribas, músico e produtor de São Paulo à frente do estúdio Veredas, e que já trabalhou com nomes como Mariana Aydar, Jards Macalé, Linn da Quebrada, Ná Ozetti, Thiago Pethit, entre outros. 

“O Iran teve um trabalho muito positivo em todo o álbum, e que vai além da mixagem e da masterização. Na primeira música, ‘Padi Nosso’, ele foi o responsável por recuperar um sampler dos anos 1930, transformando-o numa melodia rica e lindíssima. Então, foi muito importante contar com os toques e as dicas dele”, avalia Felipe Mancini.