No 41º volume da coleção “BH. A cidade de cada um“, a escritora Rosaly Senra revisita o bairro que foi palco de sua juventude e reduto de figuras como Agnaldo Timóteo, Affonso Romano de Sant’Anna e Célio Balona; lançamento será no dia 8/11
Foi entre as ruas Tenente Garro, Major Barbosa e Tenente Anastácio de Moura que a bibliotecária, radialista e escritora Rosaly Senra aprendeu o significado de pertencer. Ali, no final dos anos 1970, recém-chegada de Congonhas para estudar na capital, e dividida entre as casas dos tios e tias, abarcada por quintais floridos, residências com muros baixinhos e conversas de calçada, começou sua história com o bairro Santa Efigênia — um dos mais antigos de Belo Horizonte, reduto tradicional de militares, e de músicos e escritores do porte de Agnaldo Timóteo e Affonso Romano de Sant’Anna, além do lendário Conde Belamorte.
Agora, Rosaly formata as lembranças e os relatos de moradores anônimos e famosos, a partir de registros históricos e afetivos presentes no livro “Santa Efigênia”, a ser lançado no próximo dia 8/11 (sábado), a partir das 10h, na Made in Beagá, pela Conceito Editorial. O livro foi viabilizado com o patrocínio da empresa Tecnokor, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura.
Lugares e memórias: entre a influência militar e a resistência cultural
Fundado no final do século XIX para acolher os primeiros militares que vieram morar e trabalhar na recém-construída Belo Horizonte, o bairro Santa Efigênia se firmou como um ponto de encontro entre tradição e vanguarda.
“Estamos falando de um bairro que teve em sua construção originária a Igreja de Santa Efigênia dos Militares e o Quartel do Primeiro Batalhão, marcando a presença militar forte. E produziu espaços de arte, cultura e educação muito potentes, como a Praça Floriano Peixoto, em frente ao quartel, e palco de diversas atividades culturais da cidade até hoje, e o Grupo Escolar Pedro II, patrimônio mineiro tombado e referência educacional no ensino público. É um bairro vivo, central, essencial para a vida e a história de Belo Horizonte”, avalia Rosaly.
O livro passeia por esses e outros lugares com a alegria de quem reencontra velhos amigos — e contempla as mudanças inerentes à vida junto às permanências resistentes ao progresso. O prédio do antigo Hospital Militar, por exemplo, na rua Manaus, desmobilizado em 1945, hoje abriga o Espaço Luiz Estrela, centro de cultura gerido pela sociedade civil. O grande descampado que deu lugar à avenida dos Andradas, próximo à rua Niquelina, deixou para trás o cenário inóspito para receber a movimentada estação de Metrô Santa Efigênia, levando mais mobilidade junto ao crescimento demográfico do bairro, a partir de 1992.
E a Moradia Estudantil Borges da Costa, emblemática ocupação que ressignificou um antigo prédio da Avenida Alfredo Balena durante duas décadas, entre 1980 e 1998, como forma de sobrevivência, principalmente de alunos pobres vindos do interior do estado, em meio aos altos preços dos aluguéis na capital. Construído originalmente para abrigar o primeiro hospital oncológico do país, o Borges da Costa atualmente serve como Complexo Hospitalar da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Por outro lado, o Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, fundado na década de 1970 por Mãe Efigênia, ainda permanece como guardião das tradições afrodescendentes seculares que compõem o tecido social do Santa Efigênia. Até hoje, a comunidade, inserida aos pés da Serra do Curral, luta pela preservação de uma região rica em biodiversidade e constantemente assediada pela atividade minerária.
“É muito interessante notar que as ruas do Santa Efigênia, nomeadas em homenagem aos militares e médicos que foram ocupando uma região mais tarde conhecida como ‘área hospitalar’, preservam a essência de um bairro que sempre teve um papel de efervescência cultural forte e uma resistência social muito importante, a exemplo da Moradia Borges da Costa e do Quilombo Manzo. A vocação do Santa Efigênia sempre foi a arte e a mobilização social. E continua sendo, como uma das regiões mais efervescentes no Carnaval”, diz Rosaly.
Personagens e influências: de Villa-Lobos ao Clube da Esquina
Entre as figuras que marcaram o bairro, emergem personagens que ajudaram a moldar a identidade cultural de Belo Horizonte. Seu Amadeu, livreiro responsável pelo primeiro sebo da cidade, uma referência para gerações de intelectuais e estudantes mineiros, viveu em Santa Efigênia no início de sua estadia na capital. Ainda hoje e há 77 anos em funcionamento ininterrupto, a Livraria Amadeu segue firme na rua Tamoios, no centro de Belo Horizonte.
Célio Balona, o músico que, junto a Milton Nascimento, Wagner Tiso e Nivaldo Ornelas, semeou o que viria a ser o Clube da Esquina, encantava os moradores com seu acordeon em Santa Efigênia, no primeiro vislumbre antes das famosas harmonias desenvolvidas no bairro Santa Tereza ganharem o mundo. E Agnaldo Timóteo, o menino da favela Pau Comeu (hoje não existe mais), situada entre os bairros São Lucas e Santa Efigênia, e que se tornaria uma das grandes vozes da música brasileira, é lembrado como um dos moradores mais espirituosos da região.
Foi em Santa Efigênia que se criaram também Sebastião Viana, flautista, maestro, assistente e revisor das partituras de Heitor Villa-Lobos, e pai do compositor mineiro Marcus Viana. Assim como Affonso Romano de Sant’Anna, um dos maiores poetas e ensaístas do Brasil — e que viveu em Santa Efigênia, na casa de sua madrinha, Dona Elza de Moura, durante a juventude.
Rosaly teve a honra de entrevistar Dona Elza, educadora e ex-diretora da Escola Modelo (atual Instituto de Educação de Minas Gerais), e uma das pupilas de Helena Antipoff, pedagoga e psicóloga russa pioneira na educação especial no Brasil. Dona Elza faleceu em 2024, aos 108 anos, mas deixou um depoimento valioso.
“Dona Elza tinha a memória intacta, lembrando de cada detalhe do bairro, dos nomes dos moradores mais antigos, das grandes áreas de mato que se estendiam pela região, antes da chegada do metrô, dos comércios e do desenvolvimento. Ela falava sempre com o Affonso Romano de Sant’Anna, que telefonava com frequência. Eu acho importante resgatar essas histórias de pertencimento. São elas que nos inspiram e nos conectam”, avalia Rosaly.
Inspirações de gente comum: Turma do Siliba e Conde Belamorte
Para além de artistas conhecidos, a trajetória do Santa Efigênia é feita de gente comum, mas muito importante — a tal ponto de entrar para o imaginário coletivo do bairro de forma definitiva. Entre eles, está o pessoal da Turma do Siliba, amigos que por mais de seis décadas se reuniram para celebrar a vida no conhecido bar do Hélio Berberick, entre as ruas Tenente Anastácio de Moura e Coronel Antônio Pereira da Silva. No local, os encontros foram eternizados por uma placa, com os dizeres: “aqui vivemos nossos anos dourados”.
Outro nome inesquecível é o de Conde Belamorte, barbeiro, músico e poeta que dormia em um caixão e transformou a Rua Anastácio Moura em cenário de mistério nos anos 1980. Por sempre andar com uma capa preta e ostentar um visual impactante, com cabelos e barba longos, além de cultivar hábitos soturnos, como frequentar o cemitério diariamente, sempre às 18h, não raras vezes foi confundido com o cineasta Zé do Caixão.
“Belamorte era um homem muito culto e diferente: um leitor voraz e um instrumentista de mão cheia. Praticava karatê e salto com vara e tocou trompete na banda militar de Minas Gerais em devoção à Juscelino Kubitschek. Ou seja, tinha uma personalidade peculiar. Apesar de assustar as pessoas com sua capa preta, ele era um homem brilhante, poliglota e sensível, que escrevia poemas sobre o amor e a morte. Foi uma personalidade importante, lembro de passar na barbearia dele e sempre ficar curiosa”, diz Rosaly.
Em 160 páginas, o livro dedicado ao bairro Santa Efigênia é um encontro com as raízes de Belo Horizonte, mas vai além de meros registros históricos e geográficos, ao costurar uma infinidade de afetos pessoais e eternizar lendas, casos e criações artísticas, iluminando o protagonismo do bairro na gênese de algumas das expressões socioculturais mais importantes da cidade.
“As histórias do livro exaltam a força de um bairro muito especial, um verdadeiro centro de cultura, casa de artistas importantíssimos e de pessoas simples, que marcaram a história de Belo Horizonte e, em muitos casos, ganharam o mundo. O livro registra casos e fatos importantes, mas formaliza e condensa muitos sentimentos dos moradores sobre um tempo que não existe mais. E isso nos ajuda a rever o nosso olhar, principalmente o mais acelerado, contaminado pela correria do dia a dia, sobre a cidade”, completa Rosaly.
A autora: Rosaly Senra
Rosaly Isabel Senra Barbosa nasceu em Congonhas (MG). É formada em Biblioteconomia, Radialismo e Jornalismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde construiu sua carreira profissional. Foi uma das fundadoras da Rádio UFMG Educativa, na qual conduziu por uma década o programa “Universo Literário”, e atuou na criação de bibliotecas móveis e fixas em Belo Horizonte e no interior. É autora dos livros”Em busca de Cerejas – nas trilhas de Santiago de Compostela” (2004), “Quitandas de Minas – receitas de família e histórias” (2008) e “Otto” (2011). Atualmente, vive em Arraial d’Ajuda (BA), onde integra a Associação Verdejar d’Ajuda e o Movimento Mulherio das Letras.
A coleção “BH. A cidade de cada um”
Desde setembro de 2004, a coleção “BH. A cidade de cada um” vem construindo a memória afetiva da cidade por meio de textos literários escritos por pessoas de diversas gerações, escolhidas por sua grande identificação com os temas trabalhados. Publicada pela Conceito Editorial e idealizada pelos jornalistas José Eduardo Gonçalves e Sílvia Rubião, a série como ponto de partida suas vivências pessoais, eles falam sobre bairros, lugares, fatos e personagens diversos, sem o compromisso de se prenderem à história oficial, gerando grande empatia entre moradores e admiradores da capital mineira.
Lançamento do livro “Santa Efigênia”, de Rosaly Senra, pela coleção “BH. A cidade de cada um” (Conceito Editorial)
Quando. 8/11/25 (sábado), às 10h, com a presença da autora
Onde. Made in Beagá (Avenida Brasil, 305, Santa Efigênia)
Quanto. Entrada gratuita
Patrocínio. Tecnokor, via Lei Federal de Incentivo à Cultura




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