Com pré-estreia no Cine Santa Tereza, no dia 21/12, novo curta do diretor mineiro revela, com força e delicadeza, a jornada de Rayra, jovem periférica de BH que enfrenta a distância e os dilemas da sobrevivência em busca de lazer e afirmação
Noite de véspera do primeiro emprego e Rayra, de 22 anos, moradora do bairro Juliana, na Zona Norte de Belo Horizonte, decide viver o simples desejo de ir a uma festa do outro lado da cidade. Mas atravessar a metrópole, para muitos jovens das periferias brasileiras, é atravessar o mundo. No curta “Nós é Ruim e Mora Longe”, com pré-estreia no dia 21/12 (domingo), às 17h, no Cine Santa Tereza, dentro da VI Mostra Periferia Cinema do Mundo, esse deslocamento é a espinha dorsal de uma narrativa poética, dura e absolutamente cotidiana para milhares de jovens periféricos do Brasil. Os ingressos são gratuitos e estão disponíveis na bilheteria do cinema ou pela Sympla.
Em “Nós é Ruim e Mora Longe”, a protagonista Rayra não é apenas uma personagem criada para a ficção: ela nasce de uma mulher real, assim como todos os demais personagens do filme. O diretor Ítalo Almeida conviveu com a jovem que inspirou a protagonista desde a infância e construiu o filme a partir de memórias, conversas, inquietações e vivências compartilhadas com ela e outros amigos que participam do curta.
“A Rayra é uma mulher de 28 anos agora, e mora na Itália, foi viver a vida de imigrante. E todos nós, inclusive parte do elenco, crescemos juntos na Zona Oeste de Belo Horizonte, entre os bairros Havaí, Marajó e Estrela Dalva. Toda a história do roteiro é uma versão ‘exagerada’ de noites das nossas vidas. Foram muitas noites e manhãs de perrengues voltando à nossa quebrada, e que me ajudaram a sintetizar essa ideia de deslocamento nesse curta”, avalia o diretor Ítalo Almeida.
A cidade repleta de barreiras
Mais do que uma crítica social, “Nós é Ruim e Mora Longe” é uma síntese afetiva do que significa existir à margem de uma capital que concentra eventos culturais, oportunidades e espaços de lazer nos chamados bairros centrais. A trajetória da Rayra real, entre perdas familiares, deslocamentos constantes e decisões difíceis, atravessa a personagem do filme, que carrega na tela dúvidas, potências e fragilidades de quem busca sobreviver e se afirmar diante de um mundo que a empurra para as bordas.
A precariedade do transporte público em Belo Horizonte, com ônibus cheios, longas esperas e conexões inexistentes entre determinadas regiões, molda não apenas os trajetos, mas os destinos, como aponta Ítalo. “Se você faz um corpo periférico levar duas horas para sair da Zona Oeste e ir até a Zona Norte, num trajeto feito em 26 minutos de carro, você não está permitindo essas duas quebradas de se articularem”, diz o diretor. Ou seja, entre um bairro e outro, o filme revela uma compreensão de que a mobilidade urbana é um limite simbólico e político que define quem pode — ou não — fazer parte da cidade.
Personagens que existem, corpos que atravessam
O elenco, composto em sua maioria por atores de origem periférica que viveram a adolescência juntos no grupo teatral “Palavra Viva”, sustenta a autenticidade do curta, a partir de interpretações que levam às telas ecos de suas próprias vivências, criando um tecido narrativo que mistura lembrança, corpo, atuação e afeto. Por isso, os atores Marya Bittencourt, Peron e Aimê interpretam personagens inspirados neles mesmos.
Já Nica Alcântara, que vive Rayra, recria no filme a intimidade de quem dividiu trajetos, escolas, palcos e rolês com os amigos. Rodrigo Arruda retorna às suas origens, assim como Guilherme Hamacek, nascido na Zona Norte da capital mineira e conhecido por novelas na televisão brasileira, reencontra em Venda Nova seu ponto de partida. Já FLIP, que cresceu em outra quebrada da capital, entrega ao filme a fiel sensação de atravessar a cidade para existir e conseguir encontrar os amigos.
O vestir, o ver, o viver: estéticas da quebrada
Os figurinos são assinados por Gabriel Mendes e Carolina Baião, com acervo do Garimpo 101, marca nascida no bairro Estrela Dalva, e que contribui para reforçar a estética periférica e original do filme. As roupas escolhidas carregam referências reais do cotidiano. E, algumas peças, usadas com orgulho em noites emblemáticas de festas, trazem até certa dose de hipérbole estética, simbolizando o desejo de ser visto, fazer parte e se afirmar.
“Para esses personagens e para o meu grupo de amigos, ‘dar um close’ não era uma escolha, mas um modo de vida. Era esperado que você fosse bonito aquele dia para o rolê. Até porque, todos os outros dias da semana, era o uniforme de um lugar chato que você ia usar, certo?”, justifica o diretor.
As locações também traduzem visualmente a realidade da periferia: o metrô de Belo Horizonte, com sua aparência provinciana e vagões quase vazios; o Cristo do Barreiro, grandioso e estranho ao mesmo tempo, marca uma estética paradoxal comum nas quebradas; e as ruas onde a terra divide espaço com trilhos e grandes torres de concreto da alta sociedade escancaram as dualidades sociais de Belo Horizonte.
O cinema como eterno retorno às origens
Ao acompanhar a noite da protagonista, o filme também transforma em arte a angústia silenciosa daqueles que tentam ocupar novos espaços, mas não se sentem completamente pertencentes a eles, mesmo após vencer, vez ou outra, as barreiras impostas pelo mal planejamento da mobilidade urbana. Por isso, “Nós é Ruim e Mora Longe” faz um apelo também ao olhar cuidadoso e contínuo para as origens. “É normal chegar num lugar que você ‘queria’ estar e ter dificuldade de se aceitar como um corpo presente naquele espaço. E o filme fala bastante sobre isso”, argumenta Ítalo.
“Mas quando as coisas estiverem confusas, volta para a base e procura entender. Acho que nós, pessoas periféricas que estamos acessando novos espaços, muito por conta da luta de muita gente que sofreu para que possamos desfrutar dessas novas possibilidades, temos que fazer o exercício de olhar para nossa origem sempre. E quando eu digo origem, eu digo território, família e, principalmente, amigos. Aquelas pessoas e espaços que te acolheram quando você ainda estava formando seus ideais são grandes professores”, diz Ítalo.
Financiamento coletivo Ítalo Almeida
Em janeiro de 2026, será lançada uma campanha de financiamento coletivo com meta de arrecadação de R$ 20 mil, destinada a abater parte dos custos de produção do filme e apoiar a circulação do curta em festivais e mostras pelo país.
Ítalo Almeida
Ítalo Almeida é diretor, roteirista e artista visual mineiro, nascido na Zona Oeste de Belo Horizonte. Sua trajetória é marcada por experiências em artes visuais e audiovisual, com participações em projetos e residências importantes, como a 8ª Bolsa Pampulha (2022), parceria da Prefeitura de Belo Horizonte com o Museu de Arte da Pampulha (MAP) e o Viaduto das Artes. Seu trabalho se estrutura a partir de uma investigação sobre territórios periféricos e as potências humanas que emergem deles. Neste contexto, Ítalo dirigiu curtas exibidos e premiados em festivais nacionais, entre eles “…Lombrado” (2021), apresentado no 17º Cine BH e vencedor no Festival OFFCINE de Ouro Preto.
Estreia do curta “Nós é Ruim e Mora Longe”, de Ítalo Almeida
Quando. 21/12/25 (domingo), às 17h
Onde. Cine Santa Tereza (Rua Estrela do Sul, 89, Santa Tereza)
Quanto. Entrada gratuita, com ingressos retirados na bilheteria ou pela Sympla
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