No terceiro dia da nossa Jornada Nacional de Luta das Mulheres Atingidas, realizada entre os dias 2 e 5 de junho/25, na Universidade de Brasília, as 1000 mulheres reunidas prestaram uma homenagem mística às lutadoras populares que construíram a luta, nossa organização e hoje não estão mais conosco. Nicinha, Dilma Ferreira, Beta Cárceres, Debora e Flavia Amboss são algumas das mulheres inspiradoras da nossa luta, e que foram vítimas de alguma forma da violência machista, patriarcal e de Estado.
Um dos pontos altos deste dia permeado de muita mística é o lançamento do livro “Imprensados no Tempo da Crise: A Gestão das Afetações no Desastre da Samarco (VALE e BHP BILLITON) da nossa companheira Flávia Amboss Merçon Leonardo. Flávia foi atingida pelo rompimento da barragem da Samarco no Rio Doce em 2015, quando morava na Vila de Regência Augusta. E desde aquele novembro, sempre esteve envolvida nos espaços públicos de discussão do assunto, na construção de iniciativas de mobilização e amparo à população atingida e a pesquisa social, um dos seus grandes talentos.
Graduada e Mestra em Ciências Sociais pela UFES, o livro lançado é fruto da sua tese de doutoramento no departamento de Antropologia da Universidade de Minas Gerais. Sempre engajada em projetos de pesquisa por onde passou, ajudou a construir – além do MAB – grupos de Pesquisa como o Geppedes – Grupo de Estudos em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento no Espírito Santo que segue sendo coordenado pela professora Aline Trigueiro na UFES e o GESTA – Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais, coordenado pela professora Andrea Azhouri da UFMG.
A sua dupla experiência – de atingida e pesquisadora – permeada pela participação nas mobilizações, encontros e debates do Movimento de Atingidos por Barragens transformaram sua tese de doutorado – que lançamos agora como livro na coleção “Água, Energia e Sociedade” uma parceria do MAB com a editora Expressão Popular – em um documento de altíssimo valor histórico, analisando como se desenvolveram desde o primeiro momento os “arranjos institucionais” entre as empresas criminosas, entes federativos e autarquias públicas que, assim como hoje, consideraram pouco ou quase nada os anseios, angústias e vontades da população atingida.
A relação íntima construída com seus interlocutores – atingidas e atingidos das comunidades de Regência e seu entorno que foram sujeitos da suas pesquisas – ajuda a pôr tintas em um desenho institucional que se revelou burocrático, insensível e, em boa parte do tempo, anti-povo.
Lançar o livro de Flávia neste ano de 2025 é muito fortuito, à luz do novo acordo assinado a Repactuação do Rio Doce: As vozes atingidas que emergem do seu texto – suas angústias, frustrações, anseios e expectativas são, além de um registro histórico daquele período de espera, suspensão e implosão dos modos de vida ali desenvolvidos, um bom roteiro para analisar o que a reparação privada, nas mãos da Fundação Renova entregou e deixou de entregar. Mais do que isso, amplia a responsabilidade dos envolvidos no novo acordo do Rio Doce assinado em outubro de 2024. Boa parte das angústias descritas no livro seguem latentes, considerando que o retorno aos modos de vida ancorados em uma relação íntima das comunidades com o Rio doce e seus recursos ambientais, segue impossível.
É um livro que denuncia a ganância e arrogância da grande mineração no Brasil, que sequestra instituições públicas dobrando-as a seu favor, e que só se mantém competitiva no mercado internacional de commodities porque desconsidera os territórios, comunidades e famílias que afeta sem nenhum tipo de responsabilidade ou compensação. Também denuncia a gestão corporativa do crime, que em última medida aproxima interesses do Capital com os interesses de Estado, e com os agentes desse último servindo mais aos interesses das grandes empresas que dos cidadãos da nossa República Federativa.
Por fim, o lançamento do livro da nossa companheira Flávia neste ano de 2025 também pretende ser uma denúncia contundente do crime vil e bárbaro que a vitimou, junto com outras duas professoras – Maria da Penha de Melo Banhos, Cybelle Passos Bezerra Lara – e uma estudante Selena Sagrillo Zucolloto no município de Aracruz em novembro de 2022.
Sobre o atentado em Aracruz
Em um atentado de inspiração Nazista um menor de idade dirigiu até a escola e de posse de duas armas perpetuou esse massacre que é mais uma página sombria dos capítulos que vivemos nos últimos anos no Brasil, de recrudescimento da extrema direita, avanço do fascismo e da violência política contra as mulheres as escolas e ao conhecimento científico.
Mais do que isso, suscita um debate espinhoso sobre o papel das forças de segurança na disseminação e construção dos ideais fascistas e nazistas no nosso país: O pai do menor que realizou o massacre é um Oficial da Polícia Militar do Espírito Santo, que também compartilhava conteúdo nazista nas redes sociais como as matérias da época atestam.
Apesar disso, e do massacre ter sido cometido com a sua arma e o seu carro, até agora não houve nenhuma punição ao Tenente da Polícia Militar do Espírito Santo envolvido, que segue recebendo seu soldo enquanto de licença de saúde. Essa fuga à responsabilização reverbera a prática covarde que temos assistido por parte de integrantes de forças armadas e policiais envolvidos em tentativas de golpe, planejamento de assassinatos de figuras da república e discurso de ódio e que, quando confrontados com as consequências dos seus atos, se escondem sob o abrigo institucional que as fardas e carreiras de Estado os confere.
Com o lançamento do livro da companheira Flávia, queremos lançar luz sobre essas duas grandes injustiças às quais estão expostas não só as famílias atingidas – mas todas as famílias brasileiras: a ganância do capital, que atropela territórios, famílias e projetos de vida em busca do lucro – e a violência política de gênero, anticientífica, armada e fardada que caracteriza – junto com a intrínseca covardia – o fascismo à brasileira que vemos ascender desde pelo menos meados do golpe de 2016.
Que a coragem que a companheira Flávia manifestou em vida ao fazer a opção pelo conhecimento crítico e independente, a aposta na educação como vetor de mudança, e a constituição de uma carreira acadêmica aliada aos “excluídos” dos processos políticos, reparatórios e participativos inspirem cada vez mais brasileiras a construir suas trajetórias profissionais e de vida em defesa dos territórios e populações frente à ganância do capital e a ofensiva fascista que o acompanha.
Aos nossos mortos, nenhum momento de silêncio, mas uma vida de luta!
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